Ferrovia de Integração Centro-Oeste afetará 24 terras indígenas em Mato Grosso e Rondônia | Tudo Rondônia

Foto: InfoAmazonia

A construção da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (FICO) está prevista para afetar 24 terras indígenas dentro da Amazônia Legal, sendo 23 em Mato Grosso e uma em Rondônia. Um estudo realizado pela InfoAmazonia indica que a ferrovia cruzará 105 nascentes e afluentes de três importantes bacias hidrográficas do Brasil: Xingu, Tocantins-Araguaia e Tapajós, o que pode levar à contaminação e destruição de cursos d’água essenciais para a região.

Iniciada em 2022, a ferrovia tem um orçamento estimado em R$ 7,2 bilhões, com previsão de conclusão para 2027. O projeto, atualmente em fase de estudos para licenciamento socioambiental, contempla uma área de influência direta de 50 quilômetros, onde comunidades indígenas podem enfrentar desmatamento, erosão e alterações nos fluxos hídricos.

A análise divulgada baseou-se no Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da FICO, disponibilizado pela Infra.SA, a empresa pública responsável pela supervisão do projeto. Foi feita uma sobreposição dos dados de localização das Terras Indígenas (TIs) fornecidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) sobre o traçado da ferrovia. O EIA é a parte técnica do estudo, enquanto o RIMA compila as conclusões em uma linguagem acessível.

Segundo a InfoAmazonia, seis terras indígenas – Manoki, Irantxe, Utiariti, Tirecatinga, Nambikwara e Vale do Guaporé – estão localizadas a menos de 10 quilômetros da ferrovia, tornando-as mais vulneráveis aos impactos da construção e à pressão da expansão agrícola. O traçado da ferrovia atravessa os municípios de Água Boa, Lucas do Rio Verde, Gaúcha do Norte, Canarana, Paranatinga, entre outros, que possuem economias ligadas ao agronegócio.

A Ferrovia de Integração Centro-Oeste terá uma extensão de 1.641 km, ligando o Mato Grosso de leste a oeste, dividida em três trechos: 383 km entre Mara Rosa (GO) e Água Boa (MT), 505 km de Água Boa a Lucas do Rio Verde (MT) e 646 km entre Lucas do Rio Verde (MT) e Vilhena (RO). Parte do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a ferrovia facilitará o escoamento de produção agrícola e impulsionará a exploração mineral no Cerrado e na Amazônia, conforme informações da Infra S.A.

A FICO é uma das várias obras do projeto da Ferrovia Transcontinental, também promovido pela Infra S.A. Com uma extensão prevista de aproximadamente 4.400 km, essa ferrovia irá conectar o Porto de Açu, no Rio de Janeiro, a Boqueirão da Esperança, no Acre, estabelecendo uma ligação ferroviária entre os oceanos Atlântico, no Brasil, e Pacífico, no Peru. A FICO, em particular, unirá as BRs 158 e 163.

Comunidade Impactada

Entre os 105 corpos d’água que devem ser afetados, foram identificados três nascentes do rio Xingu: o rio Sete de Setembro, o rio Batovi e o rio Curisevo. O estudo indicou que a obra se situa fora da Terra Indígena do Xingu, mas atravessa as nascentes dos rios da região, podendo alterar a qualidade e a quantidade de água disponível, levando à poluição e ao assoreamento.

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Aldeia Ulupwene, ‘ilha’ banhada pelos rios Ulupwene e Tamitatoala. Crédito: Piratá Waurá. / InfoAmazonia

Na aldeia Ulupuwene, localizada na Terra Indígena Batovi, dentro do Parque Indígena do Xingu (TIX), a comunidade, que depende dos rios para alimentação, higiene e lazer, conta com apoio da Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX) em um Grupo de Trabalho de Componente Indígena. Este grupo é responsável por monitorar os impactos da FICO e da BR-242 no território, acompanhando os estudos e mantendo diálogo com os órgãos do governo federal.

A comunidade é cortada pelas nascentes da bacia do Xingu: o rio Tamitatoala (ou Batovi) e o rio Ulupuwene (também chamado de Bakairi), que estão entre os corpos d’água que serão afetados. Localizada na extremidade oeste da TIX, na fronteira entre o território do Xingu e fazendas produtoras de soja e milho, a comunidade está exposta a tudo o que ocorre fora da área demarcada.

Hukai Waurá, professor da aldeia Ulupuwene e membro do Grupo de Trabalho de Componente Indígena da ATIX, relata que a região já sofre a pressão do agronegócio, situação que tende a se agravar com a construção da FICO.

“Nas cabeceiras dos dois rios que atravessam a aldeia, tudo foi desmatado pelos fazendeiros. As plantações estão coladas aos rios. Nós suspeitamos que os produtores aplicam venenos nas lavouras e estes acabam entrando nos rios Bakairi e Tamitatoala, que servem à nossa alimentação. Acreditamos que estamos consumindo venenos [agrotóxicos], o que nos preocupa”, declara Hukai.

Hukai Waurá afirmou que os efeitos da FICO serão permanentes, pedindo que o governo federal se prepare para atender às demandas dos povos indígenas. Crédito: Piratá Waurá / InfoAmazonia

Para mitigar os impactos trazidos pela FICO, os indígenas pedem que o governo federal elabore um relatório detalhando os reais efeitos da obra na região de Ulupuwene.

“Em 2024, o governo não só atendeu a essa demanda, como enviou pesquisadores para dialogar com as comunidades. No entanto, até agora, não apresentaram um relatório. É necessário saber qual impacto enfrentaremos e como poderemos sobreviver com isso no futuro”, explica Hukai.

Dados da Plataforma MapBiomas apontam que, em 1985, a cobertura florestal em Mato Grosso — o estado mais afetado pela FICO — era de 80.239.031 hectares. Em 2023, essa área foi reduzida em 31%, totalizando 55.230.962 hectares. O uso da terra para agropecuária e lavouras no estado também cresceu significativamente, saltando de 9.747.376 hectares para 34.715.252 hectares, um aumento superior a 256% nesse período.

De 1985 a 2023, as nascentes da bacia do rio Xingu perderam 46% de sua superfície hídrica. Enquanto em 1985 o volume de água na região era de 117 mil hectares, em 2024 esse número caiu para cerca de 62.735 hectares, resultando em uma perda de 54.376 hectares.

Yaponuma Waurá, um dos primeiros moradores e liderança da aldeia Ulupuwene, expressa sua preocupação: “Estamos na fronteira da área indígena, e isso nos causa grande apreensão. Ouvi rumores sobre a construção da BR-242 e da ferrovia, que certamente trarão problemas para nós. Por que projetos assim causam problemas? Isso intensificará o desmatamento em nosso território e ampliará as áreas urbanas nas proximidades”.

No ciclo agrícola 2023/2024, Mato Grosso plantou mais de 11 milhões de hectares de soja, consolidando sua posição como o maior produtor nacional, com 25% da produção do país, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Nascentes Vulneráveis Há Anos

Nos anos 1990, a bióloga Rosely Alves Sanches, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), foi convidada pelo Instituto Socioambiental (ISA) para iniciar um diálogo entre os povos indígenas do Xingu e as comunidades vizinhas em municipais como Canarana, Querência e Gaúcha do Norte. As comunidades indígenas expressaram suas preocupações sobre a deterioração da qualidade das nascentes e a diminuição dos peixes.

“O ISA tinha um trabalho focado dentro do território indígena, mas havia uma solicitação por parte das lideranças indígenas de discutirem as nascentes do Xingu, que não foram consideradas durante todo o processo de demarcação do Parque Indígena do Xingu”, disse a pesquisadora.

Sanches estudou as nascentes do Xingu e sua relevância ambiental, identificando uma floresta adaptada ao clima, com raízes profundas que buscam água subterrânea. A região, que conecta a Amazônia ao Cerrado, possui áreas úmidas essenciais para produção hídrica e pesqueira, mas essas estão gradualmente desaparecendo fora do Parque Indígena do Xingu.

Em 2022, o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema-MT) aprovou a drenagem de áreas úmidas para outros usos, recebendo críticas por comprometer a produção de água e peixes. “Dentro do Parque Xingu, é possível ver lagoas e lagos. No entanto, fora do Xingu, essas áreas estão desaparecendo a cada dia”, alerta Sanches.

O rio Ulupwene flui dentro da aldeia e, para os Wauja, é essencial para mercado, banho, lazer e vida. Temem que o rio seque devido à passagem da FICO. Crédito: Piratá Waurá / InfoAmazonia

Elewoká Waurá, cacique e pajé da aldeia Ulupuwene, se mudou para a Terra Indígena Batovi em 2010, acompanhado de seus irmãos. Nascido na aldeia Piyulaga, na região central do território Xingu, tomou essa decisão ao notar que sua terra estava sendo ocupada por não indígenas para pesca, caça e outras atividades. Ele expressa preocupação com o uso de agrotóxicos nas lavouras adjacentes às nascentes e defende a preservação da mata. Ao longo do percurso para o Parque do Xingu, há uma área de cerca de 10 km pertencente à reserva legal de uma fazenda, que Elewoká deseja proteger para que o desmatamento não se aproxime de seu povo.

“Os materiais para construir nossas casas, os remédios que uso como pajé, a comida e os trabalhos de artesanato, como cerâmica e grafismo, vêm de nossa floresta”, relata o cacique.

“Aqui, o ar é diferente; é puro. Ao sair do território, a respiração muda, se sente o cheiro do veneno. Estou ansioso com o futuro; não sei como será. Estou incentivando os jovens a continuar esta luta e a proteger nossa riqueza. Pois, sem a natureza, não teremos a liberdade de ser felizes”, conclui Elewoká.

Em sua língua nativa Aruak, o cacique Elewoká Waurá alertou sobre a vulnerabilidade da aldeia Ulupuwene frente à ocupação não indígena crescente na região. Crédito: Piratá Waurá / InfoAmazonia

Infra S.A

A Infra S.A, empresa encarregada pela ferrovia, foi contatada pela reportagem e afirmou que o licenciamento prévio para toda a extensão da FICO foi obtido junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), baseado em estudos de impacto na área de influência do projeto. O IBAMA foi procurado, mas não respondeu às questões levantadas.

“Todos os cursos d’água na área de influência da ferrovia foram analisados em estudos técnicos avaliados por órgãos ambientais competentes que determinarão, na fase de instalação do projeto, as medidas adequadas de proteção e monitoramento. Entre os programas frequentemente implementados na fase de instalação, incluem-se ações de supervisão ambiental das obras, monitoramento de efluentes e recursos hídricos, processos erosivos e iniciativas para recuperação de áreas degradadas e matas ciliares”, responderam.

Além disso, adicionaram que “para as comunidades tradicionais na área de influência do empreendimento, são desenvolvidos estudos específicos que avaliam os impactos e medidas de mitigação e/ou compensação. No caso dos povos indígenas, o trabalho é supervisionado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), enquanto comunidades quilombolas são acompanhadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).”

Esta reportagem foi elaborada por jornalistas bolsistas na segunda edição do curso de Jornalismo Investigativo Ambiental e Geojornalismo, realizado com o apoio da Earth Journalism Network da Internews, e é parte do eixo educacional da InfoAmazonia.

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