Além das commodities, onde ficam os direitos das pessoas?
É tempo de discutir conectividade, sustentabilidade e justiça regional.
A Ferrovia Bioceânica, que ligará Ilhéus (Bahia) ao Oceano Pacífico, atravessando Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Acre e chegando ao Peru, é uma iniciativa notável. No entanto, há espaço para aprimoramento.
Com aproximadamente 4.400 km de extensão, seu foco atual é principalmente o transporte de commodities como soja, milho e minérios.
Contudo, essa oportunidade abre um questionamento crucial: por que a possibilidade de transporte de passageiros nas regiões que a ferrovia abrangerá (interior da Bahia, Centro-Oeste e Norte) não recebe mais atenção?
O Brasil conta com cerca de 214 milhões de habitantes, sendo que aproximadamente 50,59 milhões vivem nas regiões que carecem de transportes eficientes, integrados e acessíveis.
Por exemplo, Rondônia, com 1,8 milhão de habitantes (IBGE, 2022), é altamente dependente de rodovias, muitas das quais são precárias e perigosas. A BR-364, com 4.345 km, conecta o estado de São Paulo ao Acre, atravessando o Centro-Oeste e o Norte, e é a única via de ligação com o restante do país — enfrentando diariamente tráfego intenso e um alto número de acidentes.
Em 2023, a Polícia Rodoviária Federal registrou mais de 1.100 acidentes e 130 mortes nesse eixo.
O transporte aéreo na Amazônia Ocidental também é extremamente limitado e muitas vezes caro. Porto Velho, capital de Rondônia, possui voos diretos apenas para cinco destinos, com tarifas que dificultam o exercício do direito de ir e vir.
Cidades médias, como Ji-Paraná e Vilhena, com mais de 230 mil habitantes, dependem praticamente de ônibus rodoviários ou transporte particular.
Uma opção ferroviária facilitaria o acesso a centros administrativos e serviços de saúde complexos, além de impulsionar as economias regionais.
No Acre, a cidade de Rio Branco ganharia uma conexão mais eficiente com o restante do país e os países vizinhos.
Na Bahia, onde a ferrovia terá sua origem, o interior também se beneficiaria imensamente. Cidades como Ilhéus, Barreiras e Luís Eduardo Magalhães, polos do agronegócio, enfrentam gargalos de conectividade, mas estão em crescimento econômico.
O transporte de passageiros pela ferrovia permitiria maior integração entre as cidades do Centro-Oeste e as duas costas da América do Sul, ampliando as oportunidades econômicas, sociais e culturais.
Considerando que a rota entre Ilhéus e Barreiras tem cerca de 750 km de rodovia e enfrenta tráfego pesado e altos custos de manutenção, a ferrovia se apresenta como uma alternativa viável.
Em tempos de emergência climática, como será evidenciado na COP 30 em Belém, é fundamental integrar soluções que considerem o meio ambiente.
Embora não seja uma solução definitiva, o transporte ferroviário é uma alternativa inteligente e estratégica. De acordo com a ANTT, a ferrovia emite até 75% menos CO₂ por tonelada-quilômetro que o transporte rodoviário. Um trem moderno pode emitir até 80% menos gases de efeito estufa por passageiro do que um carro e 60% menos do que um ônibus.
Não estamos falando do “fim” do transporte rodoviário, mas sim de uma valorização de um modal que complementa a logística — beneficiando a economia, o país e o planeta.
Trata-se de retirar milhões de litros de diesel das estradas anualmente e aumentar a eficiência e a segurança do sistema de transporte nacional.
Países como Europa, Índia, Argentina, México e China já operam ferrovias mistas para cargas e passageiros, e o Brasil deve avançar nesse setor. Projetos recentes, como a Ferrovia Norte-Sul, indicam um caminho possível.
A Ferrovia Bioceânica não pode ser apenas um “corredor para commodities” a serviço de grandes grupos. Ela deve assumir uma função estratégica que atenda à eficiência logística, sustentabilidade ambiental, inclusão social e justiça territorial de forma integrada.
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